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Procedimentos auxiliares no Regime Diferenciado de Contratações (Lei nº 12.462/13)

 

Publicado em: A&C. Revista da AGU. Brasília-DF, ano XII, nº 39,p. 173-200, jan./mar. 2014.

 

Juliano Heinen[1]

 

RESUMO

O presente trabalho aborda, por meio de uma análise crítica, os principais aspectos no que se refere aos procedimentos auxiliares do Regime Diferenciado de Licitações, modalidade de seleção, pela Administração Pública, de propostas contratuais com base na Lei nº 12.462/11. Para tanto, a pesquisa desenvolvida traz à tona possíveis soluções às incongruências compreendidas a partir do texto legal. Conclui-se, por fim, o estudo sobre os mencionados procedimentos auxiliares ainda é prematura, a ainda revelar, portanto, intensos debates.

ABSTRACT

This paper discusses, through a critical analysis of the main aspects regarding the auxiliary procedures in differential treatment of contracts, mode selection, the Public Administration, the proposed contract based on Rule nº 12.462/11. Therefore, the study conducted brings out possible solutions to the inconsistencies ranging from the legal text. It is concluded finally, the study of the mentioned auxiliary procedures is premature, the still prove therefore intense debate.

PALAVRAS-CHAVE

Licitação; Regime Diferenciado de Contratações; procedimentos auxiliares.

KEYWORDS

Public selection; Regime Differentiated Contracts; auxiliary procedures.

 

 

 

 

Introdução

Foram os eventos esportivos importantes que o Brasil vai sediar que começaram a lançar questionamentos sobre a vetusta e atual Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 8.666/93), especialmente por esta não dar cabo de lançar soluções a contento aos problemas atuais. Sua defasagem é considerada notória. Dessa forma, como dito, esta responsabilidade de sediar eventos de repercussão mundial fez com que se percebesse ser imprescindível a modificação do regime licitatório tradicional, apresentando-se outro modelo, que foca em resolver a complexidade das contratações necessárias a partir do momento em que o Brasil passa a ser sede destes acontecimentos esportivos.

Assim, a princípio, ter-se-ia um modelo licitatório transitório. Contudo, tanto o legislador, como a própria doutrina apostam que este procedimento será o novo arranjo jurídico que tomará o papel protagonista no que se refere ao regime das licitações e dos contratos administrativos. Até porque, como será percebido adiante, não só já se produziram mudanças ao modelo geral, como o regime diferenciado foi estendido perenemente a outros setores nodais à Administração Pública (v.g. saúde e educação).

Antes do advento do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), surgiram outras tentativas de implementar um novo regime jurídico, como a Medida Provisória (MP) nº 489/10, que não foi apreciada no tempo devido, o que fez com que ela perdesse seu objeto; após, foi editada a MP nº 503/10, a qual sofreu uma série de emendas, sendo, por fim, este ato normativo rejeitado por inteiro; além disso, a MP 521/10, que também tratava da matéria, teve o mesmo destino.

Quando da edição e apreciação da MP nº 527/10, que tratava sobre a estrutura e o regime jurídico dos aeroportos, foi apresentada uma emenda que acabou levando a efeito e vigência o modelo atual do RDC. Então, esta Medida Provisória acabou sendo convertida na Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011, a qual disciplina o procedimento licitatório denominado de “Regime Diferenciado de Contratações” ou “RDC”[2].

Cabe destacar que justamente é esta uma das críticas feitas ao regime, porque foi apresentado e gestado em um contexto completamente diverso, ou seja, como se fosse um rescaldo de uma legislação que, definitivamente, não tratava de licitações e de contratos administrativos[3]. Era como se este novo modelo licitatório tivesse sido “encaixado” em outra legislação não afeta diretamente ao tema.

Contudo, muito do que se questiona no que se refere ao RDC é fruto de um rompimento de paradigma, o que naturalmente causa certa contingência. É trivial que todo câmbio normativo cause um atrito à harmonia jurídico-normativa estabelecida. Ao longo da exposição, será percebido que o RDC não necessariamente trouxe novidades bastantes a se perfazer tamanha celeuma em relação a ele, dado que ele se aproxima, em larga medida, com o procedimento do pregão (Lei nº 10.520/02). Há, aqui, uma conjunção de boas técnicas constantes nos outros modelos licitatórios, agregando-se, no texto legal, outras soluções já apontadas pela doutrina e pela jurisprudência, principalmente do Tribunal de Contas da União (TCU). Dessa maneira, o RDC tem por escopo, em essência, romper com o anacrônico modelo licitatório atual, viabilizando boas práticas que intentam conseguir dar maior celeridade aos procedimentos licitatórios, combater eventuais fraudes nesta seara, permitir a eficiência na viabilização das obras e nos serviços públicos tão necessários à Nação etc.

Assim, o RDC é uma tentativa de perfazer um câmbio na conjuntura que se processa atualmente. Há a necessidade de que se perceba que estas “inovações” trazidas por este prematuro regime muito refletem práticas já desenvolvidas por organismos estatais, por pessoas jurídicas de direito privado da Administração Pública indireta ou por organismos internacionais. E assim, o RDC passa a positivar as práticas consideradas já popularizadas no limiar da própria Nação brasileira.

Deve ser salientado que, nem bem a MP nº 527/11, convertida na Lei nº 12.462/11, entrou em vigor, já é objeto de Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI), tombada sob o nº 4.655, a qual foi promovida pela Procuradoria-Geral da República. A primeira alegação é de natureza formal, já que a referida medida provisória acabou por converter, em lei, tema estranho à proposta original, conforme salientado logo antes. Além disso, outros vícios de ordem material são ventilados, como a inconsistência do art. 1º, em não especificar quais as obras e serviços seriam disciplinados pelo RDC[4]; alega-se, ainda, a violação do princípio da igualdade por mecanismos como a adoção prioritária da empreitada integral em certos objetos, o sistema de pré-qualificação etc.

Da mesma maneira, a Lei nº 12.462/11 ainda é questionada pela ADI nº 4.645, proposta pelo Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB, pelo Democratas – DEM e pelo Partido Popular Socialista - PPS (art. 103, inciso VIII, da CF/88). Alegam, entre outros fundamentos, justamente o abuso no poder de emendar as medidas provisórias, dado que, no presente caso, o objeto original do mencionado ato normativo foi completamente modificado[5].

O que é certo é a convicção de que o modelo atual não está a contento. E, a partir desta verdade é que se deve passar a visualizar o RDC como uma nova modalidade que visa a trazer inéditas soluções à área de licitações e de contratos. E estas incursões inserem-se em um modelo gerencial de Administração. Temos a certeza de que ainda há muito que se debater sobre o tema, e, para tanto, deve-se dar os devidos passos neste sentido.

1 Natureza jurídica da Lei nº 12.462/11

A Lei nº 12.461/11 não foi clara em estabelecer a natureza jurídica das regras do RDC. Não há dúvidas que foi estabelecida uma nova modalidade licitatória[6], na linha do que já dispunha a Lei nº 8.666/93 – e suas várias espécies de procedimentos licitatórios (concorrência, tomada de preços, convite, concurso, leilão e registro de preços) e a Lei nº 10.520/02 (que trata do rito de pregão). A questão é definir quais os artigos tratariam de normas gerais e quais deles seriam afetos somente ao ente federado União. Enfim, quais normas seriam de caráter nacional, e quais delas teriam a natureza de normas federais.

Cabe referir, por oportuno, que o uso do RDC é opcional, ou seja, lastreado na oportunidade e conveniência do administrador público. Convive, assim, em paralelo com a atual Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93).

2 Premissas constitucionais sobre o tema

A primeira premissa que deve ser trazida à tona reflete a certeza de que o RDC deve estar compatível com os parâmetros estabelecidos no inciso XXI do art. 37 da Constituição Federal de 1988[7] (CF/88). Assim, p. ex., este modelo licitatório deve ser pautado a partir dos seguintes parâmetros: imperioso ter presente a igualdade de condições a todos os concorrentes, incluindo-se cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento. Além disso, devem ser mantidas as condições efetivas da proposta, bem como somente permitirá as exigências de qualificação técnicas e econômicas indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. Veja que deverá ser reputada inconstitucional qualquer exigência no RDC que rompa com a igualdade entre os concorrentes, ou mesmo que exija uma qualificação técnica não pertinente ao objeto licitado.

Da mesma forma, o art. 22, inciso XXVII[8], do texto constitucional, determina que compete privativamente à União legislar sobre normas gerais sobre licitações. Sendo assim, o RDC é típica regra geral de licitação – sendo esta típica “lei quadro” –, tendo natureza de lei nacional, ou seja, vale, de maneira uniforme, a todos os entes federados, até porque atinge interesses de todos eles, sendo que seu objeto transborda de uma perspectiva particularizada. Nada impede que os Estados, Municípios e Distrito Federal editem regras específicas sobre o regime diferenciado, respeitando, por óbvio, as normas de caráter geral.

Importante perceber, nesse aspecto, se o Decreto federal nº 7.581/12, que regulamenta a Lei nº 12.462/11 no âmbito da União, pode ser estendido aos Estados federados. Para isso devemos partir das premissas estruturais dos arts. 22 a 24, da Constituição Federal de 1988, que dão a base orgânica à federação brasileira. A partir disso, evidenciou-se quem faz o quê. Tomando por base de um elemento-chave inserido na estrutura federativa, a regulamentação impositiva e infralegal pelo Presidente da República aos demais entes federados seria impensável em matérias legislativas em que sua competência não é plena ou privativa, mesmo diante de um modelo federativo brasileiro, vamos dizer, “híbrido”.

Mas, avançando, a partir disso temos de que evidenciar os limites normativos do art. 84, inciso IV, CF/88 – poder deste Chefe da Nação em fazer cumprir as leis. Assim, conclui-se preliminarmente que:

  1. assume-se que a Lei nº 12.462 é regra que estabelece normas gerais e, portanto, Estados, DF e Municípios estão vinculadas a ela; estes só podem editar, no seu âmbito, a legislação de normas especiais que se baseia na lei geral; contudo, conserva-se, aqui, a devida autonomia federativa;

  2. Nesse sentido, o Decreto federal nº 7.581/12 só tem validade no âmbito da União, não tendo natureza nacional; desse modo, cada Poder Executivo dos demais entes federados deveria ou poderia editar o seu decreto;

Ademais, por estes e outros fundamentos, também se considera impossível a compreensão de que os Estados, DF e Municípios possam aplicar o Decreto federal por analogia, salvo previsão expressa em lei local, nas matérias em que este trata de temas específicos à lei local.

4 Procedimentos auxiliares no RDC

            Os procedimentos auxiliares são ferramentas que visam a prestar uma assistência ao administrador público que quer adquirir produtos ou serviços pelo regime diferenciado instituído pela Lei nº 12.462/11. Apesar disso, tais procedimentos conservam a sua autonomia em relação ao rito principal do RDC. São ferramentas que serão criadas para auxiliar vários procedimentos licitatórios realizados sob esta modalidade.

            O RDC, no art. 29, discriminou quais são os procedimentos auxiliares das licitações regidas pelo disposto nesta Lei:

  1. pré-qualificação permanente – art. 30;

  2. cadastramento – art. 31;

  3. sistema de registro de preços – art. 32; e

  4. catálogo eletrônico de padronização – art. 33.

            4.1 Pré-qualificação ou pré-qualificação permanente

            Ela não é um mecanismo novo, porque já outrora consagrado na Lei nº 8.666/93, art. 114, e tem por meta justamente desburocratizar uma das fases mais complexas do procedimento licitatório: a habilitação. A análise dos documentos de habilitação, por vezes, gera um encargo muito grande à comissão de licitação, especialmente quando estão concorrendo muitos interessados, e os documentos apresentados exigem uma análise técnica complexa e apurada. Assim, esta fase do procedimento torna-se sensível e, não raras vezes, alvo de recursos administrativos e de contendas judiciais.

            Com o fito de justamente permitir a desburocratização do procedimento, o legislador entendeu por bem antecipar esta fase, permitindo que esta pré-qualificação possa ser utilizada para várias licitações. Veja que, em um único momento, qualificam-se os interessados que, caso habilitados, estão aptos a participar de vários certames públicos pertinentes a esta pré-qualificação. Assim, antecipa-se a fase de habilitação, filtrando as empresas ou os bens que estão aptos a participarem de concorrências futuras.

            Imagine o caso de a Administração precisar, por certo período, de determinados materiais de construção. Ela faria a habilitação prévia dos interessados ou dos bens de que necessita. Assim, em aquisições posteriores, dispensar-se-ia esta fase, gerando uma economia significativa de recursos e de tempo.

            Para o RDC, considera-se pré-qualificação permanente o procedimento anterior à licitação, destinado a identificar duas coisas (art. 30, “caput” e incisos I e II):

  1. fornecedores que reúnam condições de habilitação exigidas para o fornecimento de bem ou a execução de serviço ou obra nos prazos, locais e condições previamente estabelecidos – pré-qualificação subjetiva; e

  2. bens que atendam às exigências técnicas e de qualidade da Administração Pública – pré-qualificação objetiva;

            Percebe-se, assim, que a pré-qualificação tem por meta identificar bens ou pessoas que possam satisfazer as necessidades da Administração Pública que se farão incidentes de maneira sucessiva – permanente. Destaca-se que se pode qualificar um interessado que forneça determinado bem, ou um bem fornecido por vários interessados.

            Uma medida importante tomada pelo § 1º do art. 30 consiste em deixar a pré-qualificação permanentemente aberta para a inscrição dos eventuais interessados. Contudo, ela terá validade de até um ano podendo ser atualizada a qualquer tempo (§ 5º). Assim, a empresa tem sua pré-qualificação garantida por até um ano.

            Deve-se ter atenção ao disposto no art. 30, § 2º, da Lei nº 12.462/11, porque ele permite que a licitação seja restrita aos pré-qualificados[9], conforme determine o regulamento. Note que, neste caso, a competitividade ficaria altamente restrita, impedindo que outros participantes possam acessar o certame. Esta crítica é minimizada pelo fato de que a pré-qualificação está permanentemente aberta, sendo que, em momento anterior, as empresas poderiam a qualquer tempo ter buscado sua qualificação.

            Outro dispositivo interessante consta no § 4º do art. 30, porque se permite que a pé-qualificação seja feita de maneira parcial. Significa dizer que o ente estatal, p. ex., pode identificar aqueles requisitos mais complexos, mais tormentosos nas habilitações e perfazer esta qualificação de modo prévio. Então, as outras condições de habilitação serão analisadas em cada certame que se processará[10].

            4.2 Cadastramento

            O cadastramento também não é um instituto jurídico inédito, porque a União já utilizava esta prática há muito, pelo Sistema de Cadastramento de Fornecedores (SICAF)[11]. No RDC, este mecanismo é disciplinado pelo art. 31. Os registros cadastrais podem ser mantidos para efeito de habilitação dos inscritos em procedimentos licitatórios por um prazo máximo de um ano, podendo ser atualizados a qualquer tempo. Significa dizer que uma determinada empresa pode antecipar certos documentos e cadastrá-los previamente no sistema específico. Depois de validado, basta que, nos variados certames que se sucederão, apresente seu cadastro regular junto ao sistema competente. O custo para a empresa é diminuído substancialmente, porque precisa apresentar os documentos uma única vez. Quando há o indeferimento deste cadastramento, cabe recurso específico.

            Da mesma forma como ocorre com a pré-qualificação, os registros cadastrais serão amplamente divulgados e ficarão permanentemente abertos para a inscrição de interessados (§ 1º do art. 31). Veja que, se o licitante não cumpre com suas obrigações contratuais, pode ter esta observação inserida no seu cadastro (§ 3º), até para que, em um futuro certame, saiba-se sobre este fato.

            4.3 Sistema de registro de preços

            O sistema de registro de preços, da mesma maneira que outros procedimentos auxiliares, já não é nenhuma novidade, até porque, há muito, previsto expressamente no art. 15, §§ 1º a 8º, da Lei nº 8.666/93[12]. A lei geral adota esta ferramenta para aquisições e para serviços comuns[13], a fim de dotar os entes estatais para obter produtos que se necessita corriqueiramente.

            Com essa modalidade de licitação quer-se evitar problemas como o desabastecimento de produtos de que se necessita corriqueiramente, ou a perda de produtos perecíveis quando não utilizados. Afinal, consegue-se, com o registro de preços, uma aquisição corriqueira ou em momentos específicos, evitando-se a burocracia de um procedimento licitatório complexo. Enfim, visa a regularizar situações em que não se tem a condição de se ter aquisições uniformes.

            Um exemplo interessante pode aclarar este panorama: a Administração Pública não tem como prever, de antemão, quantos medicamentos de determinada espécie ficará obrigada a fornecer, ou mesmo terá dificuldade de armazenar todo este plantel de fármacos. Com o registro de preços, ela vai adquirindo aos poucos a quantidade de remédios de acordo com a demanda da população. Em certos meses pode necessitar de uma quantia diversa de outros períodos. O importante é que indique ao mercado uma estimativa de custos, ou seja, quanto pretende gastar em face a determinada quantidade de produtos, a fim de parametrizar a licitação por esta modalidade aqui comentada.

            Contudo, com o tempo, o registro de preços passou a ser considerado como um mecanismo muito eficiente a outros tipos de contratações. Hoje se discute se este sistema poderia ser estendido a serviços e a obras, passando a se dar outras aplicações a este regime.

            Além disso, a Administração Pública utiliza o registro de preços não só para produtos de que necessita periodicamente, mas também para quando está diante de vários entes estatais interessados em contratar o mesmo objeto. Neste caso, o mesmo produto pode ser objeto de contratação por alguns órgãos ou entes públicos, momento em que se racionaliza o procedimento, permitindo, é certo, que se franqueiem estas várias pretensões contratuais em um único certame. Exemplificando: imagine que vários órgãos (que podem ser, inclusive, pertencerem a entes federados diversos) pretendam adquirir determinado mobiliário. Eles estabelecem a quantidade que cada um quer contratar e fazem, em conjunto, um único certame pela modalidade de registro de preços. Há duas vantagens: racionalizam-se recursos, porque se faz um único certame, em vez de vários, bem como se tem a potencialidade de se conseguir preços melhores ao objeto licitado, porque a quantidade a ser adquirida é maior.

            Assim, o legislador percebe que o registro de preços poderia bem ser aplicado ao RDC, momento em que o insere a partir das premissas alocadas no art. 32, podendo ser utilizado para várias espécies contratações. Uma diferença candente entre o sistema de registro de preços da lei geral de licitações (art. 15, § 3º, inciso I, da Lei nº 8.666/93) para com o RDC (art. 32, § 2º, inciso II, da Lei nº 12.462/11), é a seguinte: enquanto que o primeiro adota, inexoravelmente, a modalidade de concorrência para a formação do registro, no regime diferenciado este certame é feito de acordo com os procedimentos previstos em regulamento.

            Como “produto”, por assim dizer, do registro de preços, gera-se uma ata, que nada mais é do que um documento vinculativo, tanto para a Administração Pública, quanto para os particulares. Mas em que termos? Estipula que o Poder Público deva respeitar a ordem de classificação e os termos estabelecidos no procedimento licitatório. E o fornecedor que tem o preço registrado obriga-se a entregar aquilo que se propôs à Administração Pública e no valor indicado na manifestação de interesse, durante o prazo estabelecido que, no máximo, pode ser de doze meses[14].

            Esse documento (ata) não se confunde com os contratos administrativos celebrados com base nele. Logo, o próprio prazo do contrato poderá ser superior a doze meses, ou seja, não se baliza pela ata de registro de preços. Aliás, dela podem se gerar vários contratos, que são, como dito, documentos com regime jurídico diverso.

            4.3.1 Adesão

            A adesão é um instituto muito peculiar, previsto no sistema de registro de preços, sendo apelidado de “carona”. Tem sua definição capitaneada pelo § 1º do art. 32 da Lei nº 12.462/11: “Poderá aderir ao sistema referido no caput deste artigo qualquer órgão ou entidade responsável pela execução das atividades contempladas no art. 1º desta Lei”. Esta figura jurídica já era prevista nos Decretos federais nº 3.931/01 e nº 4.342/02, art. 8º, § 3º[15], e justamente muito se questionava a constitucionalidade do referido ato normativo, por justamente não possuir previsão na Lei nº 8.666/93. Trata-se, aqui, de verdadeiro caso de dispensa de licitação, que somente poderia derivar de previsão legal expressa, ou seja, reclama reserva de legislação. Sendo assim, por esta ótica, a figura do “carona” seria ilegal e inconstitucional.

            Além disso, alegava-se que este instituto violava o art. 37, XXI, da CF/88, porque esta regra impunha a todo órgão público o dever de licitar. Contudo, este argumento não nos serve, justamente porque se adere a um procedimento em que se efetivou um certame público. O dever de licitar – que, inclusive, é relativizado em muitos aspectos – foi preservado. Essa discussão foi levada ao TCU, que se manifestou pela legalidade do procedimento[16].

            Em termos singelos, a adesão permite que outro órgão público, que não participou do registro de preços, firme contratos com base em ata constituída por outros organismos estatais. Para tanto, algumas premissas e condições devem ser respeitadas[17]:

  1. deve existir plena discriminação do objeto a ser contratado pelo sistema de registro de preços, acompanhado da pertinente justificativa e necessidade da contratação;

  2. comprovação da compatibilidade econômica, avaliando a conectividade  do valor dos bens, para com os preços de mercado;

  3. respeito aos quantitativos discriminados na ata de registro de preços, sendo vedada a contratação em patamares superiores.

            O item “c” é o mais polêmico. Para se ter uma ideia, o TCU, ao seu turno, preocupa-se que a figura do carona se adapte aos quantitativos contratados, não podendo os entes públicos negociar em níveis superiores à ata homologada. Os organismos estatais devem gerenciar a ata de forma que a soma dos quantitativos contratados em todos os contratos derivados dela não supere o quantitativo máximo previsto no edital[18]. Logo, esta decisão da Corte de Contas federal restringiu a figura do “carona”. Muito embora, após o julgamento dos embargos de declaração opostos pelo Ministério do Planejamento, o TCU tenha permitido a contratação por adesão sem os limitadores, ou seja, de maneira mais flexível, até o fim de 2012[19].

            O RDC preocupou-se com a possibilidade de se perpetrarem abusos a partir da figura da adesão. Dessa forma, no regulamento federal que detalha a Lei nº 12.462/11 previram-se limites específicos a respeito[20]. No art. 102, §§ 2º e 3º, foram positivadas as seguintes limitações:

  1. Os órgãos aderentes não poderão contratar quantidade superior à soma das estimativas de demanda dos órgãos gerenciador e participantes;

  2. A quantidade global de bens ou serviços que poderão ser contratados pelos órgãos aderentes não poderá ser superior a cinco vezes a quantidade prevista para cada item.

            Veja que, no primeiro caso, veda-se que o “carona” estabeleça contratos cujas quantias sejam superiores à soma das estimativas feitas na ata de registro. Ao mesmo tempo, a soma de todas as adesões não poderá ser superior a cinco vezes a quantidade estabelecida como limite máximo a cada item. Exemplificando: imagine que quatro órgãos públicos unam-se para, em um procedimento, adquirir, cada um, duzentas e cinquenta mesas, em um total de mil. Neste caso, um eventual aderente somente poderia tomar por base esta ata de Registro de Preços para adquirir no máximo mil mesas, ou seja, o somatório do quantitativo de todos os licitantes – primeiro limite (letra “a”). Ademais, esta ata somente serve para abarcar a quantidade de “caronas” em até cinco mil cadeiras, ou seja, cinco vezes a soma do quantitativo máximo de cada item, que, no caso, era único (ex. mesas) – segundo limite (letra “b”). Essas balizas são importantes marcos à contenção de eventuais excessos, as quais não foram contempladas no regime geral de licitações[21].

            Sobre a prorrogação do prazo de validade da ata do registro de preços e sua adesão por outro interessado, o Tribunal de Contas da União tem admitido a legalidade desta prática[22].

            4.4 Catálogo eletrônico de padronização de compras

            É um sistema informatizado que busca uniformizar certos atos, signos, procedimentos etc. dentro do certame licitatório, a fim de dar maior efetividade, celeridade e segurança jurídica às licitações. O art. 33, da Lei nº 12.462/11 dispõe que o catálogo eletrônico de padronização de compras, serviços e obras consiste em um sistema de gerenciamento centralizado, ou seja, que concentre em um único órgão a gestão dos dados dos certames públicos. Destina-se a permitir a padronização dos itens a serem adquiridos pela Administração Pública que estarão disponíveis para a realização de licitação. Cabe fazer a ressalva no sentido de que a padronização aumenta a otimização dos recursos, conferindo praxes importantes a se ganhar celeridade e uma maior qualidade nos certames licitatórios.

            A advertência feita pelo parágrafo único do art. 33 dispõe que o catálogo poderá ser utilizado em licitações cujo critério de julgamento seja a oferta de menor preço ou de maior desconto. Neste caso, a instituição pública deve estar de posse de toda a documentação e procedimentos da fase interna da licitação, assim como as especificações dos respectivos objetos, conforme disposto em regulamento específico.

Conclusão

Assim como tantas outras inovações produzidas nos últimos anos em direito administrativo, o Regime Diferenciado de Contratação necessita de um período de maturação. Apesar disso, sem sombra de dúvidas, ganha, hoje, um papel protagonista no cenário nacional. Aquele que seria um regime jurídico de contratações transitório e relegado a desaparecer juntamente com a entrega da última medalha dos Jogos Olímpicos de 2016, cresce e toma espaço nas relações mais triviais das contratações públicas.

Porém, não podemos nos enganar ao pensar que ele tenha chegado à fase adulta. Ao contrário, acredita-se que viva a mais pulsante adolescência, repleto de conflitos, dúvidas, acertos e erros, mas completamente vivo e mergulhado nas mais intensas aspirações (e contradições...) que esta fase deste ciclo da existência revela. Para tanto, apresentou-se, neste trabalho, uma análise crítica sobre pontos obnubilados no que se refere aos procedimentos auxiliares da Lei nº 12.462/11, especialmente se comparados ao regime geral da Lei nº 8.666/93.

 

 

 

 

 

[1] Mestre em Direito (UNISC). Ministra aulas na Universidade de Caxias do Sul (Extensão), Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS (Pós-Graduação), na Faculdade IDC (Extensão e Pós-Graduação), na Escola Superior da Magistratura Federal (ESMAFE), na Fundação Escola Superior da Defensoria Pública (FESDEP), na Escola Superior da Advocacia Pública (ESAPERGS), no Curso Verbo Jurídico. Atualmente, desempenha as funções Procurador do Estado do Rio Grande do Sul.

 

[2] Essa legislação foi alterada pelas Leis Federais nº 12.688/12, nº 12.722/12 e nº 12.745/12, e o Decreto Federal nº 7.581/11 regulamentou a referida lei.

 

[3] Tanto é verdade que a Medida Provisória em questão foi gestionada na Secretaria de Aviação Civil, sendo que em nenhum momento fez-se menção à criação de um regime diferenciado de contratação.

 

[4] Consideramos essa alegação débil, porque mesmo a Lei nº 8.666/93 não especifica as obras a serem tuteladas por um regime geral de procedimentos licitatórios.

 

[5] Neste aspecto, o próprio § 4º do art. 4º da Resolução nº 1 de 2002, oriunda do Congresso Nacional, veda a apresentação de emendas que versem sobre matérias estranhas ao objeto da medida provisória.

 

[6] Para os limites teóricos deste trabalho, utilizar-se-ão, como sinônimos, os termos “modalidades” e “procedimentos” licitatórios.

 

[7] CF/88, Art. 37, inciso XXI: “ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”.

 

[8] CF/88, Art. 22, inciso XXVII: “Compete privativamente à União legislar sobre: normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III;”.

 

[9] Lei nº 12.462/11, Art. 30, § 2º: “A administração pública poderá realizar licitação restrita aos pré-qualificados, nas condições estabelecidas em regulamento.”

 

[10] A título de complementação, a regularidade fiscal, no RDC, pode ser postergada (art. 14, inciso IV, da Lei nº 12.462/11), ou seja, avaliada em momento posterior à habilitação e somente daquele que será contratado, ou seja, do vencedor, na linha do que já dispõe a LC nº 123/06.

 

[11] Art. 78, Decreto federal nº 7.581/11.

 

[12] Cuja regulamentação encontra-se estampada no Decreto federal nº 3.931/01.

 

[13] Cf. art. 10, da Lei nº 10.520/02.

 

[14] Importante notar que o Decreto federal nº 7.581/12, que regulamenta o Regime Diferenciado de Contratações, no art. 99, parágrafo único, determina que a ata tenha um prazo de validade mínima de três meses, o que não se percebe nas regras licitatórias gerais. Veja que esta medida é salutar, porque se impede que se programem certames com validade exígua, prejudicando a competitividade.

 

[15] Art. 8º A Ata de Registro de Preços, durante sua vigência, poderá ser utilizada por qualquer órgão ou entidade da Administração que não tenha participado do certame licitatório, mediante prévia consulta ao órgão gerenciador, desde que devidamente comprovada a vantagem. (…) § 3º As aquisições ou contratações adicionais a que se refere este artigo não poderão exceder, por órgão ou entidade, a cem por cento dos quantitativos registrados na Ata de Registro de Preços.

 

[16] TCU, Acórdão nº 1.233/2012, Pleno; TCU, Acórdão nº 2.311/2012, Pleno; TCU, Acórdão nº 2.692/2012, Pleno; TCU, Acórdão nº 1.192/2010, Pleno; TCU, Acórdão nº 1.487/2007, Pleno.

 

[17] Segundo o que decidiu o próprio TCU, Acórdão nº 2.764/2010, Pleno.

 

[18] TCU, Acórdão nº 1.233/2012, Pleno; TCU, Acórdão nº 2.311, Pleno.

 

[19] TCU, Acórdão nº 2.692/2012, Pleno.

 

[20] Instituído pelo Decreto federal nº 7.581/11.

 

[21] Importante mencionar que a União não deve aderir às atas de registro de preços de órgãos estaduais e municipais, até porque estes conferem ao certame uma publicidade mais restrita (art. 106, Decreto federal nº 7.581/11).

 

[22] TCU, Acórdão nº 991/2009, Pleno.

 

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